De repente, a história muda?

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Por Isabella Silva

Observando as produções audiovisuais nacionais, é perceptível uma representatividade questionável quando o assunto abordado é Nordeste. Historicamente, o uso de atores e elementos que não fazem parte da região são inseridos nas histórias televisivas de forma superficial, e por vezes, sem o devido respeito à cultura, à população e à história do lugar.

Partindo dessa perspectiva, é interessante indagar: Qual o papel dessas obras na criação de estereótipos nordestinos? Um questionamento bastante plausível diante do fato de que a maioria desses papeis é interpretada por sulistas e sudestinos que nunca vivenciaram o dia a dia da região, que nunca tiveram contato com a cultura do lugar e que não foram preparados devidamente para tais personagens. Acaba que, juntando tudo isso, a tendência é que a interpretação deles se torne metódica, caricatural e forçada, causando insatisfação nos telespectadores da região nordestina.

Discussões em torno da representação midiática do povo e da região nordestina vem ganhando mais espaço à medida que nos conscientizamos sobre a importância da representatividade. A recente novela “Mar do Sertão“, exibida em 2022 trouxe consigo características que despertaram discussões e sensações contraditórias de esperança e revolta. A dramaturgia produzida e exibida pela rede Globo trouxe a representação do Nordeste não apenas na história e cidade cinematográfica, mas também na escolha do elenco para a produção. E pela primeira vez na história, uma novela que se passa no Nordeste contou com a participação de 20 atores da região que puderam fazer uso do “sotaque que Deus lhes deu”.

reprodução: globoplay

O sentimento de revolta vem ao perceber como faltam oportunidades aos que estão fora do “circuito”, mas o de esperança se sobressai ao ver crescer o número de nordestinos não apenas lutando por voz, mas aprendendo a construir os próprios espaços. E é imbuídos dessa esperança que destacamos um dos pontos mais positivos da trama de Mário Teixeira: os trovadores do sertão que costuram o final de um capítulo com o começo do outro por meio de seus repentes.

Os paraibanos Juzeh e Lukete transformaram a forma de encerrar os episódios diários da novela se utilizando de forma sagaz e inteligente do repente, que é a arte da cantoria e do improviso. O repente é considerado patrimônio cultural do Brasil, e tem a característica de ser sempre cantado em duplas que se alternam improvisando versos.

Juzeh e Lukete nos bastidores de gravação de “mar do sertão” — Foto: Roberto Teixeira/Gshow

“Mar do Sertão” é prova de que é possível abrir espaço para a diversidade e de que a utilização de aspectos regionais originais nas teledramartugias inovam e proporcionam aos telespectadores uma imersão e identificação com a história. O incômodo com a representatividade do nordestino na TV não é apenas de quem assiste, mas também de quem vive o processo audiovisual, como declara Juzeh:

são poucos exemplos na história que vemos nordestinos na TV. Tá sendo um deleite pra gente curtir do nosso jeito, as nossas tiradas.

Os atores e repentistas, Juzeh e Lukete, produziam em cima do briefing das cenas principais, mas sempre deixando um espaço para as rimas improvisadas durante as gravações. A ideia e iniciativa do diretor artístico, Allan Fiterman, trouxe para a novela das seis um novo olhar da população, e a quebra de alguns estigmas.

Ouso dizer que os repentes ao fim de cada capítulo de “Mar do Sertão” podem instaurar uma nova maneira de apresentar o Nordeste e sua cultura para a população afora: O Nordeste pelos olhos e vozes de profissionais nordestinos. Porém, é válido lembrar que esse é um acontecimento pontual é que ainda é notório e predominante a região ser retratada apenas por meio da seca, da divisão de terras, da escassez e “trambicagem”, e seus personagens serem interpretados por profissionais de outras regiões.

Talvez o “pecado” de “Mar do Sertão” seja insistir na trama ambientada em tonalidades terrosas, como se toda uma população vivesse suja de lama com pobres vestindo couro e algodão cru e ricos vestindo linho e renda. O historiador Durval Muniz, em seu livro “Preconceito contra a origem geográfica e de lugar” (2007), afirma a estereotipia como algo imperativo, repetitivo e caricatural e que tais características são recorrentes nas novelas brasileiras.

Mas no final das contas, é o aceite do público a parte principal para um audiovisual de sucesso. E independente da trama repetitiva, os telespectadores da novela das seis aprovaram o protagonismo nordestino, o que proporcionou o surgimento de novos rumos para artistas da região. Com o grande sucesso, a rede Globo trará alguns personagens de “Mar do Sertão” para a história da nova novela No Rancho Fundo que será uma história paralela aos acontecimentos da trama protagonizada por Sergio Guizé e Isadora Cruz. Os personagens que escancararam a regionalidade e cultura na telinha, Juzeh e Lukete, estarão também na nova trama das seis, comprovando que quando ganhamos oportunidades, fazemos! E fazemos bem feito, mesmo diante de adversidades presentes em ambientes de grande preconceito regional.

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