Um sotaque inventado

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Por Marília Duarte

O sotaque nordestino é uma das características mais marcantes da cultura brasileira, carregando consigo nuances linguísticas e culturais que refletem a diversidade e riqueza da região. No entanto, é comum nos depararmos com atores não nordestinos interpretando personagens da nossa região e adotando um sotaque – vou dizer sem meias voltas – forçado, muitas vezes caricato e distante da realidade.

Essa prática de forjar sotaques levanta questões importantes sobre representatividade e respeito à diversidade cultural, sobre a centralização de oportunidades na área de atuação para profissionais dos grandes centros de Sul e Sudeste e sobre as construções estereotipadas dos tipos que não se encontram nessas regiões do país.

Ao forçar um sotaque que não é natural para o ator, corre-se o risco de perpetuar estereótipos e reforçar uma visão superficial e exótica do Nordeste brasileiro, alimentando o que Edward Said chamou de “orientalismo”. Esta é uma linha de pensamento científico Ocidental que busca, a partir de suas lentes, investigar como se comportam os estrangeiros, percebidos como orientais de uma maneira exótica. Poderíamos chamar, portanto, de “orientalismo do sertão” essa percepção que relega ao Nordeste o lugar comum criado pelo olhar estrangeiro.

Há incontáveis atores e atrizes nordestinos em busca de oportunidade, mas os papéis de sotaque nordestino raramente chegam até eles. E quando chegam, dão a eles lugares bem específicos numa trama como o ignorante, o pobre, o serviçal, a ingênua e gostosa, o emergente, o bandido, o feio de bom coração, a guerreira resiliente etc. Por muito tempo o Nordeste foi usado como protagonista de histórias, mas em seus elencos nunca havia nordestinos interpretando os papéis principais.

Longe de querer culpar os atores e atrizes, que estão fazendo o seu trabalho, é importante destacar que algumas produções já foram e vem sendo muito criticadas por seus sotaques pouco autênticos. Nesses casos, ao invés de enriquecer a narrativa, acabam por desviar a atenção do público e reforçar estereótipos prejudiciais. É verdade que há profissionais incríveis que conseguem interpretar personagens de origens diversas das suas de maneira respeitosa e com base em muito estudo e investigação responsável. Mas por que não dar ao nordestino um papel de nordestino? Ganha o ator, o personagem, a trama e o público.

Frame da novela Cordel Encantado. Reprodução: GloboPlay

A representação midiática do Nordeste, muitas vezes, cai na armadilha do exotismo, retratando a região como um lugar pitoresco e atrasado, em vez de reconhecer sua complexidade, modernidade, beleza e, acima de tudo, sua originalidade. A tentativa de reprodução de sotaques alheios mais contribui para uma simplificação e distorção, do que qualquer outra coisa.

Além disso, é importante lembrar que atores nordestinos muitas vezes são “orientados” a mudar seus sotaques para se adequar a papéis em novelas e outras produções pois enfrentam constantemente a xenofobia. Foi o caso de Silvério Pereira, natural de Mombaça, no Ceará. O ator chegou a revelar que já “foi alvo de comentários debochados e que mudou seu sotaque após sofrer preconceito”.

Já o pernambucano, Renato Góes, e a paraibana Isadora Cruz, protagonistas na novela Mar do Sertão, exibida na rede Globo de televisão em 2022, tiveram um cenário diferente da maioria e puderam trabalhar ao lado de mais atores da região e sem a necessidade de mudar seus sotaques de origem.

Ambos foram ao programa Conversa com Bial para falar sobre essa experiência e já na abertura do programa, Pedro Bial chega a enfatizar que eles não tiveram que neutralizar seus sotaques, e que ali era um espaço livre, onde o “nordestinês” poderia ser falado.

Na entrevista exibida no dia 13 de março de 2023, Isadora diz que já foi bastante aconselhada a mudar de sotaque não apenas atuando, mas “na vida”, caso contrário, ela não conseguiria trabalhos, isso porque as pessoas nunca iam conseguir enxerga-la fora do sotaque.

Frame do programa “conversa com bial” – Reprodução: Globoblay

Isso demonstra um desrespeito à diversidade linguística e cultural do audiovisual brasileiro, uma hipocrisia escancarada, além de reforçar a hierarquização de sotaques dentro da própria nação. Quem foi que inventou que a fonética das palavras não é ‘natural’ quando se é nascido no Nordeste? 

Para promover uma representação mais autêntica e inclusiva do Nordeste  brasileiro, é fundamental que os produtores de audiovisual valorizem e incentivem a participação de atores nordestinos em papéis que reflitam a diversidade da região. Como foi o caso da Novela Mar do Sertão, que teve cerca de 20 atores nordestinos atuando, um recorde repercutido em portais, com extrema naturalidade. Além disso, é necessário um esforço coletivo para desconstruir estereótipos e combater a xenofobia linguística, promovendo o respeito e a valorização de todas as formas de falar e ser brasileiro.

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