O esquecimento das múltiplas faces do Nordeste brasileiro
Por Marília Duarte
As novelas da Rede Globo têm desempenhado um papel significativo na construção de estereótipos sobre a região Nordeste do Brasil. Dessa verdade, nenhum nordestino discorda. Porém, é inegável que essa representação tende a ser caricatural e fantasiosa, estigmatizando uma região tão rica em diversidade cultural, histórica e, porque não, econômica.
Os estereótipos mais comuns são o da pobreza, da miséria e da inocência, presente em praticamente todas as novelas produzidas pela emissora. Personagens nordestinos são frequentemente retratados em situações precárias, enfrentando a fome, a seca, a falta estudo, por muitas vezes sujos, com roupas em cores terrosas, como se nós tivéssemos um padrão até nas vestes, colocando pedaços de trapos marrons no corpo. Seriam esses os elementos inerentes à nossa verdadeira vida cotidiana?
A novela Gabriela, disponível no streaming da Globo, é inspirada no livro do grandioso Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela. A personagem principal (Juliana Paz), é uma moça alegre, ingênua e muito bonita, que foge da seca do sertão nordestino rumo a Ilhéus, na Bahia. Lá ela é encontrada suja e desmazelada pelo árabe Nacib (Humberto Martins). Mesmo depois de casar com o árabe e ganhar o status de pessoa rica e bem sucedida, Gabriela continua praticamente do mesmo jeito. A personagem parece não ver razão nos recatados costumes civis de Ilhéus e continua com comportamentos inerentes à sua realidade anterior.
Neste caso podemos entender as referências, tendo em vista que a obra original é de 1958, e nesta época a realidade nordestina era outra. Mas porque já estamos em 2024 e a estética usada para representar o povo nordestino continua a mesma, como se estivéssemos parados no tempo?
É verdade que o sertão ainda é um lugar quente e seco, que ainda precisa de investimentos governamentais para auxiliar as comunidades dessa região. É verdade que temos orgulho de nossa história e origens, mas porque falar do Nordeste é falar apenas desse aspecto da região?
Flor do caribe, também disponível no streaming GloboPlay, é mais um exemplo claro dessa abordagem simplista que obscurece a realidade multifacetada do Nordeste. A novela se passa no litoral do Rio Grande do Norte e tem um elenco principal cuja preparação não se preocupou em ajustar sotaques, de modo que são raras as vozes da trama que indicam o lugar onde ela se passa. Porém, o problema dos estereótipos começa com o núcleo “pobre” da novela, família de pescadores, estes sim com a tentativa de alcançar o sotaque nordestino global – inventado no Sudeste -, que frequentemente desconsidera as particularidades de cada estado da região. Os problemas seguem ao observarmos os figurinos utilizados por esses personagens, que fazem mais referência ao sertão que ao litoral. É possível ter um guarda-roupas só com peças em tons de marrom e combiná-las, todo santo dia com a família? É comum ver pessoas usando gibão de couro e tocando sanfona nas praias do litoral? Bem, mas é isso que acontece com a família de Candinho (José Loreto). Os personagens desse núcleo, assim como Gabriela, são ingênuos e terrosos.
A mesma situação acontece em Cordel Encantado. Neste caso, o enredo fantasioso abre espaço para diversas licenças poéticas, mas parece que mesmo com mais liberdade, a escolha estética para falar do Nordeste sempre cai no mesmo lugar comum.
Tudo isso nos faz pensar: Quem nos enxerga desse jeito? Por qual motivo eu me vestiria sempre com vestidos de babados e estampas combinando com o chão como se veste Açucena (Bianca bin) antes de descobrir que era a filha perdida de um rei? O blog da Dia Nobre diz:
Ah, mas eles querem retratar pessoas pobres”. Não, não é essa a questão. Se fosse, não veríamos a mesma estética em novelas como Renascer (sobre os Coronéis do cacau), Tieta (uma mulher que retorna rica para sua cidade), Velho Chico (a riqueza da fruticultura irrigada), Mar do sertão (a riqueza é a água), entre outras que não lembro agora.
A representação dos nordestinos nas novelas reforça estereótipos negativos. Nos retratam como pessoas sujas, ignorantes e ingênuas. Essa visão distorcida contribui para a perpetuação de preconceitos e discriminação contra a população nordestina, alimentando uma narrativa que marginaliza e desrespeita uma das regiões mais vibrantes e importantes do país.
Reconhecer que as novelas têm um alcance massivo e exercem uma influência significativa na percepção pública sobre o Nordeste é importante. Portanto, fica sob a responsabilidade dos autores, produtores e editores garantir uma representação mais autêntica e respeitosa da nossa região, evitando cair na armadilha dos estereótipos e buscando retratar a diversidade e a complexidade do Nordeste brasileiro de forma mais fiel.
Uma forma de diminuir esses erros conceituais é abrir mais espaços para diretores, produtores, editores e atores nordestinos, cuja própria vivência contribui para uma representação mais fidedigna dos costumes e da cultura contemporânea da região.